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Title : Por que gritamos
Author: Santos, Elisama
ASIN : B087WKB2Y2
[image file=Image00000.jpg] © Elisama Santos, 2020
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de bancos de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem permissão do detentor do copyright.
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Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Santos, Elisama
S234p
Por que gritamos [recurso eletrônico] : como fazer as pazes consigo e educar filhos emocionalmente saudáveis / Elisama Santos. - 1. ed. - São Paulo : Paz e Terra, 2020.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5548-001-6 (recurso eletrônico)
1. Crianças - Formação. 2. Parentalidade. 3. Educação de crianças. 4. Psicologia infantil. 5. Pais e filhos. 6. Livros eletrônicos. I. Título.
20-64125
CDD: 649.1
CDU: 649.1
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439
Produzido no Brasil
2020
Aos meus filhos, Miguel e Helena, por me reconectarem à criança que fui um dia.
Hoje sei que ela ficaria orgulhosa da adulta que me tornei.
SUMÁRIO
PREFÁCIO – Taís Araújo
CARTA AO LEITOR E À LEITORA
1. Fazendo as pazes com os sentimentos
2. Fazendo as pazes com quem se é
3. Fazendo as pazes com o passado
4. Fazendo as pazes com a criança que mora em nós
5. Fazendo as pazes com a parentalidade possível
6. Fazendo as pazes com os relacionamentos
7. Fazendo as pazes com a vida
AGRADECIMENTOS
PREFÁCIO
Quando Elisama me convidou para escrever o prefácio do seu segundo livro, Por que gritamos , o título me saltou aos olhos, já que vira e mexe me pego falando alto com meus filhos — para, na sequência, sentir o arrependimento, acompanhado das lembranças dos gritos de minha mãe para mim, na minha infância. Junto do arrependimento e das lembranças, perguntas me passam pela cabeça: Precisava gritar?; Esse grito era porque meu filho/minha filha não me obedeceu ou porque estou exausta?; Diz respeito a eles ou a mim?; Existe uma maneira diferente de educar, menos violenta?.
Preciso dizer que detesto grito e tenho muita dificuldade em lidar com a violência. Mesmo assim, quando me pego fazendo uso dela, me sinto culpada e volto à minha infância: eu fui uma criança que apanhei. Não muito, mas apanhei, porque naquela época bater em filhos era uma forma de educar.
Então, quando engravidei, prometi a mim que jamais bateria em meus filhos, e nesses 8 anos de vida do meu filho mais velho, João Vicente, e 5 anos de Maria Antônia nunca bati em nenhum deles, mas gritar... Ah, os gritos saem quando eu menos espero e voltam em looping: arrependimento, lembranças e perguntas. Por isso, quando o texto de Elisama chegou até mim, me chamou tanta atenção. Não quero gritar com eles, porque acho violento e não acredito na violência como solução para nada. Eu acredito no amor, no acolhimento, no afeto e no diálogo. Ah, acredito no limite também, porque limite, para mim, é amor. Será possível educar meus filhos somente sobre esses pilares? Mesmo quando eles parecem ter entrado num acordo de que só pararão de testar minha paciência quando eu der o primeiro grito?
Conheci o trabalho da Elisama por meio das redes sociais. Educação é um tema que me interessa muito, e me senti seduzida por esse “novo” conceito de educação não violenta . Novo para mim, já que fui educada da forma “antiga”. Bom, segui acompanhando o trabalho dela pelas redes, trocamos algumas mensagens, até ela me convidar a escrever estas linhas.
Além deste volume que você tem nas mãos, ela me enviou seu primeiro livro, Educação não violenta , obra em que não só explica o conceito como dá exemplos de como colocá-lo em prática. Para escrever com maior conhecimento, achei prudente começar pelo primeiro livro — o que me fez quase perder o prazo de entrega deste texto. Eu me reconheci em vários relatos de mães e pais, muitas vezes perdidos e encurralados entre a educação que tiveram e a que gostariam de dar aos filhos. Como filtrar a educação que tivemos? Como não repetir o que não consideramos útil? E como fazer uso do que recebemos de melhor dos nossos pais?
Considero esses dois livros de Elisama como dois amigos que posso recorrer para me acolher, reconfortar, aconselhar e até para me guiar. Como estou com os dois ao lado da minha cama e como tenho dois filhos que estão 24 horas comigo — sim, estou escrevendo este prefácio no período de distanciamento social, para evitar o proliferação do novo Coronavírus, mais especificamente no 17º dia dentro de casa. Podem imaginar o quanto esses livros estão fazendo sentido?
Podem rir, faço isso o tempo inteiro; também choro, e muito. Tenho oscilado demais! E tem sido assim, dia após dia. Esses dias têm sido importantes para tudo: repensar como nos relacionamos com a Terra, com os seres humanos que habitam esse planeta, com os animais, com as plantas, com quem não conhecemos, com quem escolhemos dividir nossos dias e com nossos filhos, que são crianças e merecem um mundo justo e de possibilidades iguais para todos. Parece que estamos neste momento sendo colocados em xeque para que consigamos recalcular a rota, para seguirmos por um caminho diferente deste até aqui. E quem são e como estão nossos filhos, e como lidamos com eles nestes momentos de crise?
Termino destacando um pensamento que não me sai da cabeça: Quanto de mim, dos meus problemas, medos, angústias, cansaço, tristezas e frustações eu jogo nos meus filhos? Quanto a minha insegurança influencia na educação que dou a eles? Como não passar para eles uma carga que é minha? E como criar crianças que possam compreender os valores fundamentais da vida e das relações, vivendo num mundo e num momento tão específico como este, em que o medo e a insegurança tomam conta do meu corpo e da minha mente? Quando os vejo correndo pela casa, brincando, brigando e até me desobedecendo, parece que essas respostas me chegam de maneira muito natural: é por eles. Por eles que a coragem deve superar o medo. Então, coragem, mães e pais! Coragem para nos encararmos de frente e com maturidade! A leitura dos livros de Elisama vale muito. E vale por muitos motivos. Principalmente para entender que não somos os únicos e não estamos sozinhos nesta aventura cheia de caminhos, que é a educação de uma criança.
Taís Araújo, atriz,
apresentadora e jornalista
CARTA AO LEITOR E À LEITORA
Antes de iniciar uma palestra eu sempre dou três avisos que julgo muito importantes. E cá estou, iniciando este livro com eles. São lembretes simples, e seriam óbvios se não vivêssemos tão desconectados de nós mesmos e da fluidez da vida. E digo vivêssemos porque são avisos que repito para mim, dia sim, dia também, porque não vou me colocar no lugar de pessoa que encontrou a iluminação e jamais pisa na bola. Estamos todos na caminhada, cada um a seu passo e ritmo. A vida existe para além dos feeds perfeitos.
Pois bem, vamos aos avisos:
O primeiro deles é que não sou capaz de reprogramar o seu DNA. Nem de trocar o seu chip. Neste livro não há uma receita infalível para que você nunca mais grite com a criança ou jamais faça chantagem emocional com o adolescente. Temos algumas certezas na vida: precisamos de ar para viver; os bebês possuem um sensor que detecta quando as mães vão saborear uma comida quentinha e que os faz chorar desesperadamente justo nesse momento, e nós vamos errar. Vamos errar muito, várias vezes. Vamos gritar mesmo sabendo que não é o melhor caminho. Vamos perder a paciência, mesmo tendo prometido a nós mesmos que permaneceríamos calmos e serenos como a brisa. Vamos fazer merda. Todos nós, sem exceção. A escritora Kristin Neff, no livro Autocompaixão , afirma que, sempre que prometemos nunca mais errar, estamos estabelecendo para nós mesmos uma meta de gente morta. Gente viva erra. E eu quero lembrar que você está vivo. Ou viva. Então adeque as suas expectativas e lembre-se disso antes de se impor algo que jamais vai atingir. Não se presenteie com a garantia de frustração.
O segundo aviso é que os seus pais fizeram o melhor que podiam, com as ferramentas que tinham. Quando educaram você, não havia palestras sobre educação. Não havia livros, aos montes, nas prateleiras das livrarias. Não havia o Google. Pasme: não havia redes sociais. Munidos do conhecimento limitado que tinham, fizeram o que era possível fazer. A maioria deles não foi nem sequer tocada pelos próprios pais. Você já parou para pensar nisso? Que as gerações anteriores às nossas eram tratadas com tanta indiferença emocional que não recebiam um toque gentil ou um colo dos cuidadores? O conceito de infância é recente, sobretudo da forma que enxergamos essa fase da vida na atualidade. Então, de acordo com o que sabiam e diante do que receberam, eles fizeram o melhor e nada do que dissermos aqui será uma crítica pessoal ao que fizeram ou a quem são. Não há pai nem mãe que acorde disposto a causar danos emocionais aos filhos. Mesmo que isso não seja verbalizado, estão todos, cada um ao seu modo, fazendo o melhor com o que têm para dar. Os nossos pais fizeram o melhor. E nós também o fazemos.
O terceiro e último aviso é que você possui hoje tudo o que é necessário para iniciar a prática da não violência. O que quero dizer é que você não é uma pessoa nervosa demais ou irritadiça demais para isso. Você não é alguém que não tem jeito. E cuidar de si e do outro com gentileza e respeito não é coisa de gente naturalmente calma, branda e amorosa. E digo isso com muita segurança, já que branda não é exatamente uma palavra que alguém poderia utilizar para me definir. Na verdade, desde muito nova o meu apelido faz referência a algo oposto: um furacão. Eu tenho a palavra “c’alma“ tatuada no braço direito. Alguém que tatua “calma” não é alguém calmo, concorda? Você não precisa ser outra pessoa, precisa apenas aprender a lidar com quem é. Simples e complexo assim. Essas são as cartas que vieram para a sua mão, e reclamar porque a dama de ouros ou o ás de copas não estão entre elas não fará do seu jogo algo melhor. Você é bom o suficiente. Você é boa o suficiente. E eu quero provar isso nas próximas páginas. É para isso que este livro surge. Para que você faça as pazes consigo.
Em tempos de receitas milagrosas para ficar famoso, juntar o primeiro milhão, influenciar pessoas e conquistar a vida dos sonhos, eu desejo que você aprenda a amar quem você é. A apreciar as coisas simples da vida. A estar presente, mesmo quando o presente não é a realização dos seus sonhos. Porque aprender a abraçar a nós mesmos nos deixa mais dispostos a abraçar os nossos filhos. Cuidar dos nossos sentimentos nos torna mais capazes de cuidar dos deles. Ter compaixão pelas nossas imperfeições muda o nosso olhar para as imperfeições deles. Aceitar quem somos nos torna mais capazes de aceitar quem são. Educar é uma missão que começa por dentro. E o que temos dentro transborda.
Nas próximas linhas, vou dividir com você conceitos que estudei, desenvolvi e vivenciei. Vou compartilhar histórias minhas e de pessoas queridas que me deram o privilégio de escutar as suas dores e alegrias — alterando os nomes, para preservar a identidade e privacidade de cada um. Espero que entre Anas, Elisamas, Marcos e tantos outros que serão citados no caminho, você perceba que não está só. Que tudo bem ser você. Que existem formas saudáveis e possíveis de lidar com os seus erros e tropeços como parte importante da sua caminhada. Espero que você entenda que aceitação é o oposto de comodismo. A gente só é capaz de transformar o que aceita que existe. E, enquanto não aceitar quem é, você estará limitando o seu potencial. As suas relações podem ser mais verdadeiras e saudáveis. Você pode alinhar as suas atitudes com o que acredita. Ao escutar o que grita por trás dos nossos gritos, aprendemos muito sobre nós. E crescemos como pais e seres humanos.
Desejo que este seja um caminho de transformação: amorosa, gentil, assertiva, um pouco dolorosa, eu sei, mas também divertida. E, principalmente, libertadora, porque merecemos gozar da liberdade de sermos quem somos. E os nossos… ah, eles merecem pais livres, para que se sintam amados e aceitos sendo exatamente quem são.
Que o equilíbrio, a compaixão e a conexão transbordem na nossa vida.
Um abraço daqueles bem apertados,
Elisama Santos
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O grupo está atento. O silêncio enquanto eu falo é quase palpável. Na segunda fileira, Ana me encara, com uma expressão que não consigo identificar. Assim que concluo o raciocínio, ela levanta a mão.
— Eu me pergunto se você também lava prato, organiza a casa, briga com o marido e tem conta para pagar. Porque a minha vida está um caos, e eu não consigo seguir nada disso. Eu não consigo…
As lágrimas rolam feito enxurrada, enquanto ela me conta sobre os problemas financeiros que estão enfrentando em casa. Com dois filhos, marido desempregado e trabalhando para manter a vida nos trilhos, Ana não tem tempo, paciência nem equilíbrio para ouvir os sentimentos dos filhos ou acolher as suas dúvidas e dores. Quando estamos com lágrimas endurecidas no peito, como vamos acolher a lágrima que rola livremente pelo rosto das nossas crianças? Como vamos admitir o choro quando acumulamos tanto choro a ser chorado? Ana me conta que perde a paciência e grita com os filhos, sem perceber que o grito que exige colaboração é, na realidade, um pedido desesperado de socorro.
Seria mais fácil se a vida fosse sempre linda, satisfatória e maravilhosa enquanto educamos os nossos filhos. Seria incrível se, enquanto temos a difícil missão de ensinar sobre o mundo e a vida, as contas se pagassem automaticamente, a casa permanecesse perfeitamente limpa e organizada e o casamento e o trabalho não entrassem em crise. É inegável que seria mais fácil apenas educar. Mas não é bem assim que acontece. Enquanto o caçula grita porque o irmão escondeu o brinquedo, o mais velho berra que é mentira, os e-mails pipocam na caixa de entrada, o resultado do exame assusta e uma crise financeira assola a família e o país. Tudo junto e misturado. Sentimos dor, angústia, medo, frustração, raiva. E, em meio ao caos diário, cuidar dos sentimentos de uma criança que chora porque o brinquedo quebrou parece impossível, um desperdício da pouca energia que temos para dar conta das nossas próprias demandas. “É só um brinquedo, não precisa chorar!” pula da boca de maneira automática. “Não precisa chorar!” diz mais do que parece. Diz: “Eu tenho tantos problemas e coisas sérias para resolver e não estou chorando, quem é você para chorar por uma bobagem dessa?”
Silenciar os sentimentos dos nossos filhos diz muito sobre a nossa inabilidade de lidar com o nosso próprio sentir. O grito fala sobre nós. O nosso barulho interno excessivamente alto nos impede de escutar e nos conectar com a dor dos nossos filhos. Gritamos. Batemos. Silenciamos. Queremos que a dor pare — a nossa e a deles. E, já que não temos controle sobre o que acontece, já que não podemos mudar o resultado dos exames de saúde ou voltar no tempo e impedir a demissão e a crise financeira, calamos os nossos filhos, porque pelo menos nessa relação sentimos que temos um pouco de poder. De controle. Nela podemos gritar, exigir, subjugar. E quanto mais a vida dói, mais negamos o que sentimos, mais a dor aumenta e menor é a paciência para lidar com a dor alheia, o que causa ainda mais dor. É o ciclo do caos.
Calma, não quero que você sinta culpa ou desesperança neste momento. Quero apenas que entenda que o “felizes para sempre” não existe. Que a Cinderela com certeza bateu algumas portas do castelo, sentindo vontade de mandar o príncipe para o inferno. Idem para a Branca de Neve. Depois do “felizes para sempre” ainda há muita história a ser vivida e contada. Ainda há lágrimas, frustrações, medo. E nenhum desses sentimentos é prova de que você é incompetente e incapaz de lidar com a vida. Não existe linha de chegada. Dentre outras coisas, viver dói. Assumir isso como parte da existência transforma a nossa forma de lidar com a vida. Então não, a vida não vai ficar sentada, docemente, esperando que você aprenda a lidar com os desafios que a educação apresenta. A paz não virá de fora. Ninguém vai aparecer montado em um cavalo branco ou empunhando uma varinha mágica para salvá-lo ou salvá-la. Não vai surgir uma receita milagrosa, fácil e simples de filhos emocionalmente saudáveis, colaborativos e bem-sucedidos. Seus problemas não vão acabar. Faço questão de deixar isso claro aqui, bem no comecinho da leitura, para que você ajuste as suas expectativas e assuma as suas responsabilidades. Na realidade, a opção fácil e simples não vem no pacote. Sinto muito. Educar olhando para os nossos sentimentos é difícil, mas bater e gritar o dia inteiro também é. Lidar com a culpa e a ressaca moral depois de bater em um ser mais frágil física e emocionalmente que nós e humilhá-lo também é.
Ok, vamos educar enquanto sentimos dor, enquanto as frustrações acontecem, enquanto os pratos sujos se multiplicam, as contas vencem e os problemas surgem. Algumas fases serão simples, fáceis e doces, outras serão angustiantes e excessivamente desafiadoras. A vida é uma dança. A linha reta é a morte. Enquanto estivermos vivos, vamos conviver com luz e sombra, alegria e dor, vida e morte. Felizes, tristes, angustiados, animados, alegres, desesperançados e tantas outras coisas para sempre. É hora de assumir que não fomos educados para lidar com tudo isso. Hora de assumir que não sabemos quase nada sobre quem somos. Hora de admitir, finalmente, que aprender trigonometria ou a conjugação de verbos transitivos e intransitivos foi muito pouco para nos preparar para a vida. Precisamos de mais, porque a nossa interação com o mundo exterior depende diretamente do que acontece no mundo interior. Como lidamos com as nossas emoções interfere diretamente no “bom dia” que damos — ou não — ao vizinho, na forma de conduzirmos o carro, no tom de voz que utilizamos para responder ao “mãe!” ou “pai!”.
Não escolhemos a força das ondas, o tom da música ou as cartas do jogo. A vida manda, a gente aprende a lidar com ela. Decidimos como vamos navegar, que passos vamos dar, que jogadas vamos fazer. Não é o que fizeram conosco, mas o que fazemos com o que fizeram conosco. Podemos fazer muito. E aprender a lidar com os sentimentos e com quem somos é o melhor caminho possível.
O QUE APRENDEMOS SOBRE OS SENTIMENTOS
Ana concluiu a fala, enquanto muitos balançavam a cabeça para cima e para baixo, demonstrando concordância com o que tinham acabado de escutar. Eu manifestei a minha solidariedade ao momento difícil que ela estava vivendo e perguntei se ela acolhia a própria dor. A pergunta causou um nítido estranhamento. O que é acolher a própria dor? Como se faz isso? Ela me respondeu que não pensava muito. Se pensasse, não daria conta da vida. Ela simplesmente seguia. E é nesse “simplesmente seguir”, sem pensar nem refletir, sem olhar para nós e para as nossas necessidades, que mora uma das maiores dificuldades no relacionamento com os filhos. Com o outro. Com o mundo. Sem reconhecer e acolher o sentir, Ana seguia extravasando a própria dor em gritos de “larga o seu irmão!”, “come a comida toda!”, “se eu for aí você vai se arrepender!”.
Os sentimentos fazem parte da vida. Não são aplicativos que podemos desinstalar ou desativar. São tão humanos quanto a vontade de fazer xixi ou a sensação de frio. Mas, diferentemente das nossas necessidades físicas, as emocionais não costumam ser levadas em consideração ou escutadas. Pelo contrário. As mensagens que recebemos sobre os sentimentos nos afastaram da capacidade de lidar com eles.
APRENDEMOS QUE OS SENTIMENTOS SE CLASSIFICAM ENTRE BONS E RUINS
Os primeiros podíamos sentir; os segundos, não. Podíamos ficar alegres, animados, felizes. Não podíamos ficar tristes, frustrados. Não podíamos, de forma nenhuma, sentir raiva. “Você quer um motivo de verdade para chorar?” foi uma frase ouvida com frequência pela maioria das crianças. Enquanto estávamos frustrados com o brinquedo que parou de funcionar ou com o castelinho que insistia em não permanecer firme, o adulto mais próximo minimizava a nossa dor e dizia que não deveríamos sentir o que estávamos sentindo. “Que coisa feia, uma menina tão linda chorando assim!”, “Se não parar de chorar, eu não vou dar o brinquedo!” Assim, aprendemos que havia algo de inadequado e errado em alguns sentimentos. Agora me diga, com sinceridade, quantas vezes repetiu para si mesmo ou para si mesma que não deveria chorar, ou que a sua dor era ridícula e boba, fez com que se sentisse melhor? Quantas vezes você ficou triste por estar triste? Aprendemos que os sentimentos ditos ruins não deveriam existir e, por isso, passamos a vida brigando com eles.
Sempre pergunto, nas palestras e nos eventos dos quais participo pelo país, quem, em um momento de tristeza ou depois de cometer um erro, trata a si mesmo com carinho e respeito. Quem acaricia o próprio braço, respira fundo e diz a si mesmo: “A fase está complicada… está doendo… mas você está fazendo o seu melhor!” A sala fica em silêncio. Volta e meia, alguém sorri. É tão estranho que chega a ser engraçado. Daí pergunto quem costuma dizer a si mesmo as seguintes frases: “Eu não deveria chorar”, “Eu sou muito ridícula de chorar por isso!”, “Eu mereço mesmo quebrar a cara, quem sabe assim aprendo.” As gargalhadas brotam, e os olhares de “você tem uma câmera na minha sala?” me miram. Nós nos acostumamos tanto a ter os nossos sentimentos ridicularizados e menosprezados pelos nossos cuidadores que seguimos falando com a voz deles. Os sentimentos ruins não deveriam existir. Acontece que só aprendemos a lidar com o que aceitamos que existe.
APRENDEMOS QUE OS SENTIMENTOS NÃO SÃO ­CONFIÁVEIS
— Eu odeio a vovó!
— Você não odeia ela, você ama a vovó! Que coisa feia! Olhe a ingratidão!
— Mãe, tô com fome!
— Você acabou de comer, não está com fome!
Os exemplos seriam inúmeros. Crescemos ouvindo que a nossa voz interna não sabem de nada. Que não podemos confiar nos nossos sentimentos e sensações. Que apenas a mamãe, o papai e os demais cuidadores sabem do que precisamos e o que queremos; afinal, “criança não tem querer”. Veja bem, quando crianças, confiávamos plenamente no que os adultos diziam. O que nos diziam sobre quem somos, quem eles eram e como era o mundo eram verdades absolutas. Já reparou como as crianças buscam nos pais a resposta para as questões mais diversas? Nessa fase, tão estruturante, escutamos dos adultos que eles sabem mais sobre nós do que nós mesmos. Que não podemos ouvir a nossa própria voz interna, porque ela nos coloca em perigo. Como vamos aprender a lidar com os sentimentos se não podemos confiar neles?
Há algum tempo vi uma criança perguntando à mãe se ela própria estava com sede. O nível de desconexão com as próprias necessidades era tão grande que a criança não conseguia sequer reconhecer algo tão básico quanto a sede. O pior é que achamos que essas situações são normais. Acreditamos que sim, o adulto sabe tudo sobre a criança, a ponto de atropelar o saber nato de todo ser humano. Quantas vezes, na vida adulta, nos colocamos em situações que nos provocam dor e sofrimento, negando todas as vozes internas que nos dizem que aquela não é uma boa opção? Quantas vezes anulamos o nosso próprio querer e saber, buscando no outro a resposta para como devemos agir? Quantas vezes terceirizamos a responsabilidade sobre as decisões? Quantas vezes fica subentendido, nos nossos gestos e falas, que não nos consideramos confiáveis?
APRENDEMOS QUE OS SENTIMENTOS SÃO SINÔNIMO DE FRAQUEZA E DESCONTROLE
Não sei se você já assistiu ao filme Frozen , da Disney. Se não assistiu, vou contar um pouco do enredo. O filme conta a história de duas irmãs, Elsa e Anna. Uma delas, Elsa, tem o poder mágico de criar e manipular o gelo e a neve. Nos primeiros anos da infância de ambas, Elsa usava seu dom para divertir a irmã mais nova. Produzia gelo e neve para que ela patinasse e escorregasse, até que, em uma das brincadeiras, fere acidentalmente Anna, que quase morre. Desesperados e sem saber como lidar com a situação, os pais a isolam, impedindo-a de conviver com outras pessoas, inclusive a irmã, e lhe dão um par de luvas que a ajudam a conter seus poderes. Em determinada cena, a personagem canta: “Não podem vir, não podem ver/ Sempre a boa menina deve ser/ Encobrir, não sentir, nunca saberão/ Mas agora vão.”
Já adulta e após a morte dos pais, Elsa se vê forçada a sair da sua prisão. E as luvas que por tanto tempo a impediram de machucar outras pessoas não conseguem mais conter seu dom. Sem saber como lidar com todo aquele poder, ela foge para as montanhas, onde cria para si um castelo de gelo e, no processo, mergulha acidentalmente todo o reino de Arendelle em um inverno interminável. O filme tem um final lindo: Elsa começa a aceitar seus poderes e a lidar com eles, e tudo volta a ser fofo e florido, mas não é a esse ponto que quero chegar. Quero que você preste atenção à letra da canção que Elsa canta quando foge para as montanhas. Isso faz com que se lembre de alguma coisa? O que aprendemos a fazer com a raiva? Encobrir e não sentir. E com a tristeza? Encobrir e não sentir. E com o medo? Encobrir e não sentir. E com a frustração? A angústia? A ansiedade?
Agora me conte: o que acontece depois de anos e anos encobrindo esses sentimentos? Quantas e quantas vezes fingimos não sentir, até não dar conta de tanta dor e a descarregar no outro ou em nós mesmos? Quantos invernos congelantes produzimos fora e dentro de nós porque anos usando luvas nos impediram de lidar com quem somos?
Aprendemos a encobrir os sentimentos porque forte é quem não sente. É quem sustenta o sorriso no rosto mesmo com o coração despedaçado. Choro é sinal de fraqueza; raiva é sinal de descontrole. Ambos demonstram que não somos os seres humanos perfeitamente educados e maduros que deveríamos ser.
Quantas vezes escutamos — e por vezes dizemos — que alguém é forte porque aparenta não sentir uma perda ou uma dor? E quantas vezes negamos o nosso sentir porque consideramos que, se demonstrarmos alguma vulnerabilidade, seremos considerados fracos e inadequados?
Qual é o preço da sua força? Quanto de você é atropelado e esquecido diariamente para que se mantenha firme no papel de quem não sente?
Volta e meia alguém me questiona sobre que capacidade uma geração que tem os sentimentos acolhidos terá de lidar com a dor e a frustração. Esse questionamento me mostra que temos pouquíssima consciência das nossas incapacidades. Olhe ao redor: nós somos uma sociedade que sabe lidar com a frustração? Nós sabemos lidar com a dor?
HELENA E O BRINCO
Não furamos a orelha de Helena, minha filha caçula, quando ela nasceu. Aos 5 anos, a pequena decidiu que gostaria de usar brincos. Procurei um lugar adequado, fomos até lá, mas saímos com apenas uma das orelhas furadas e uma hora de choro sofrido. Decidimos que um dia, quando estivesse pronta, eu a levaria novamente. Uma semana depois, enquanto eu viajava, algo bastante improvável aconteceu. Enquanto o pai desembaraçava os cabelos da pequena, o pente se prendeu ao brinco, puxando-o de tal forma que ele saiu pelo furinho recém-feito. Imediatamente, muito sangue escorreu. Diante da dor, do susto, do medo e da frustração de ver o brinco sair dessa forma, a minha menina chorou desesperadamente. Até que fechou os olhos, respirou fundo e cantou. Cantou para se acalmar, como eu já havia feito inúmeras vezes. Muitas pessoas me dizem que a vida não é gentil e acolhedora. Que as crianças precisam aprender a engolir a dor, porque não estarei ao lado delas para acolhê-las para sempre. Não, eu não estarei. Mas quando não estiver ao lado, estarei no coração. E Helena, aos 5 anos, provou claramente a verdade disso. Não encobrimos, sentimos. Permitir que os sentimentos existam nos torna mais capazes de lidar com eles. Força é sustentar o que se sente com respeito e honestidade. Sentimentos não são sinônimo de fraqueza.
OS HOMENS E A FORÇA
Impossível falar de força e sentimentos sem mencionar a forma como educamos os nossos meninos. Há um conceito distorcido do que é ser homem em nossa sociedade que aprisiona os homens e os distancia do próprio sentir. Sou mãe de um menino e de uma menina e vejo as pessoas tratarem o meu filho com menos carinho pura e simplesmente porque ele é menino. É comum que mudem o tom de voz ao falar com ele. Enquanto os sorrisos e o carinho costumam fazer parte da forma com que falam com Helena, Miguel recebe tapinhas nas costas, soquinhos e apertos de mão. Eu, que sou mãe e sei ler boa parte dos olhares do pequeno, sei que ele também gostaria de carinho, abraços e beijos. O fato de ter um pênis não tira dele a necessidade de toque e aconchego. Certa vez, conversando com o meu marido sobre amizade, percebemos a imensa diferença na forma como enxergamos os nossos amigos. A intimidade e o companheirismo que tenho com as minhas amigas foram construídos com lágrimas e abertura emocional. Quando criança, quando estava chateada porque havia apanhado dos meus pais, podia bater na porta da minha vizinha e melhor amiga, Carol, e era certo que encontraria um ombro no qual chorar. Era seguro demonstrar os meus sentimentos para ela. Já Isaac, meu marido, não podia fazer o mesmo. Era muito provável que, se batesse à porta de um amigo chorando porque tinha apanhado ou algo semelhante, escutasse coisas como: “Você é veado? Homem não chora!”, “Você é um homem ou um saco de batatas?”
Mesmo que a família não fosse um lugar seguro para demonstrar as emoções, para boa parte das mulheres a amizade servia como amparo e refúgio. Para os homens, não. Enquanto a mulher foi educada para se preocupar com a aparência, atrelando o valor que dava a si mesma aos quilos na balança, os homens foram educados para serem fortes. Elas não deveriam parecer gordas. (Quantas vezes você, mulher que me lê, perguntou a alguém próximo: “Essa roupa me deixa gorda?”) Eles não deveriam, em hipótese alguma, aparentar fragilidade. Parecer afeminado? Jamais!
A luva colocada na mão dos meninos vai ficando mais e mais grossa. E os seus efeitos sobre a relação com eles mesmos e com os outros são sentidos diariamente, nos índices de violência ou em simples conversas domésticas.
APRENDEMOS QUE OS SENTIMENTOS NOS FAZEM MENOS MERECEDORES DE AMOR, CARINHO E RESPEITO
Certa vez, em um momento de raiva, a minha filha, então com pouco mais de um ano, gritou com a minha mãe. Naquele momento, de maneira automática, ela respondeu: “Assim a vovó não ama!” A minha mãe deixaria de amar a neta? Jamais. Mas aquela era a forma de demonstrar reprovação que ela conhecia. Condicionando o amor. Já falei que os nossos pais fizeram o melhor que podiam com as ferramentas que tinham, mas isso não muda o fato de que aprendemos que somos amados quando somos legais, obedientes e bonzinhos. Somos amados quando agimos da maneira esperada. Quando a raiva aparecia, quando a frustração causava dor, quando a tristeza invadia, éramos também tomados pela sensação de solidão. Em vez de abraços e acolhimento, recebíamos críticas, agressões e ameaças, e o desconforto que os nossos sentimentos causavam era quase palpável. “Não posso demonstrar o que sinto, ou ninguém vai gostar de mim” era uma conclusão fácil.
Nenhum bebê deixa de chorar por medo de perder o amor dos pais. Se sente medo, fome, sono, susto, ele chora, já que o choro é a sua principal forma de comunicação. É com o tempo e a reação dos adultos ao nosso redor que concluímos que alguns sentimentos podem ser demonstrados, outros não. Que alguns sentimentos podem ser vivenciados e outros causam um desconforto tão grande em quem nos cerca que devem ser escondidos e ignorados. Que quando sentimos raiva, o papai grita e bate; quando sentimos medo, a mamãe menospreza e nos chama de bobos. Assim, associamos a alguns dos principais sentimentos humanos a certeza de que eles diminuem o afeto de quem deveria nos amar incondicionalmente.
Antes que você conclua, erroneamente, que eu acredito que as crianças devam agir da forma que quiserem, gritando, batendo e ameaçando os pais enquanto estes apenas riem e pensam: “É só uma criança!”, esclareço que entre acolhimento e permissividade há uma diferença enorme. Acolher o sentimento é entender que somos os adultos da relação e que é nosso dever ensinar às crianças que os sentimentos são inevitáveis, as nossas atitudes diante deles, não. No livro Educação não violenta , apresento formas saudáveis, amorosas e assertivas de fazê-lo.
AS CONSEQUÊNCIAS DESSES APRENDIZADOS
Foram muitos os aprendizados equivocados sobre os nossos sentimentos; listei apenas os principais. Nos ensinaram o que era um lápis e um tênis, como manusear a faca. No entanto, nunca foi prioridade nos ensinar o que são a frustração, a tristeza, a angústia. Não nos ensinaram a lidar com a raiva. No intenso e desafiador mundo interior, nos aventuramos sozinhos. E o que aprendemos a nosso respeito apenas nos distanciou dos tão almejados autocontrole e força. Fugir dos nossos sentimentos nos faz vivenciar consequências que ferem a nossa relação conosco, com o outro e com o mundo.
NÓS NOS ENTORPECEMOS
Se os sentimentos são, na sua maioria, ruins; se não são confiáveis; se são sinônimo de fraqueza e de descontrole e não nos fazem merecedores de amor, carinho e respeito, é claro que não saberemos vivenciá-los com sabedoria. Temos tanto medo do medo e ficamos tão tristes por estarmos tristes que encontramos na fuga o caminho mais eficaz. Nós nos entorpecemos. Não, não estou falando do uso de drogas ilegais, mas sim dos nossos pequenos entorpecimentos diários. Horas nas redes sociais, percorrendo feeds e timelines alheios, para não pensar em nossa própria vida. Beber, comer. Assistir à Netflix até que a mensagem “Você ainda está assistindo?” apareça na tela. Vale qualquer coisa para não experimentar a dor, o desconforto, a frustração. Nos dois anos mais difíceis da minha vida adulta, engordei 26 quilos. O nó na garganta descia mais fácil com doces cheios de leite condensado.
Cada vez que, na infância, a dor aparecia, nós recebíamos uma nova camada de dor provocada pelos nossos cuidadores. O brinquedo quebrava e você, cheio de frustração e irritação, o atirava longe. O adulto mais próximo, com a sua própria imaturidade emocional, levava a atitude para o lado pessoal. Entendia que aquele gesto era uma afronta de uma criança mal-educada. E, como reação impensada, gritava, batia, silenciava. O seu coração, que já estava acelerado, batia ainda mais rápido. Medo, raiva e mais frustação se misturavam à dor que já existia. A sensação de inadequação tomava o corpo, que, silenciado, era obrigado a engolir o choro. Assim fomos apresentados às sensações físicas e emocionais dos sentimentos. E em vez de lidar com o nosso sentir, queremos apenas que a dor pare. Nós nos entorpecemos, buscando uma anestesia. Seguimos, como a criança que se vê ameaçada por um ser com duas ou três vezes o seu tamanho, assustada e encolhida, impotente diante do que a vida traz. E é chegada a hora de assumirmos o nosso tamanho.
BRIGAMOS E RESPONSABILIZAMOS O OUTRO PELO QUE SENTIMOS
— Assim a mamãe fica triste!
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Title : Por que gritamos
Author: Santos, Elisama
ASIN : B087WKB2Y2
[image file=Image00000.jpg] © Elisama Santos, 2020
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de bancos de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem permissão do detentor do copyright.
EDITORA PAZ & TERRA
Rua do Paraíso, 139, 10º andar, conjunto 101 — Paraíso
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Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Santos, Elisama
S234p
Por que gritamos [recurso eletrônico] : como fazer as pazes consigo e educar filhos emocionalmente saudáveis / Elisama Santos. - 1. ed. - São Paulo : Paz e Terra, 2020.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5548-001-6 (recurso eletrônico)
1. Crianças - Formação. 2. Parentalidade. 3. Educação de crianças. 4. Psicologia infantil. 5. Pais e filhos. 6. Livros eletrônicos. I. Título.
20-64125
CDD: 649.1
CDU: 649.1
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439
Produzido no Brasil
2020
Aos meus filhos, Miguel e Helena, por me reconectarem à criança que fui um dia.
Hoje sei que ela ficaria orgulhosa da adulta que me tornei.
SUMÁRIO
PREFÁCIO – Taís Araújo
CARTA AO LEITOR E À LEITORA
1. Fazendo as pazes com os sentimentos
2. Fazendo as pazes com quem se é
3. Fazendo as pazes com o passado
4. Fazendo as pazes com a criança que mora em nós
5. Fazendo as pazes com a parentalidade possível
6. Fazendo as pazes com os relacionamentos
7. Fazendo as pazes com a vida
AGRADECIMENTOS
PREFÁCIO
Quando Elisama me convidou para escrever o prefácio do seu segundo livro, Por que gritamos , o título me saltou aos olhos, já que vira e mexe me pego falando alto com meus filhos — para, na sequência, sentir o arrependimento, acompanhado das lembranças dos gritos de minha mãe para mim, na minha infância. Junto do arrependimento e das lembranças, perguntas me passam pela cabeça: Precisava gritar?; Esse grito era porque meu filho/minha filha não me obedeceu ou porque estou exausta?; Diz respeito a eles ou a mim?; Existe uma maneira diferente de educar, menos violenta?.
Preciso dizer que detesto grito e tenho muita dificuldade em lidar com a violência. Mesmo assim, quando me pego fazendo uso dela, me sinto culpada e volto à minha infância: eu fui uma criança que apanhei. Não muito, mas apanhei, porque naquela época bater em filhos era uma forma de educar.
Então, quando engravidei, prometi a mim que jamais bateria em meus filhos, e nesses 8 anos de vida do meu filho mais velho, João Vicente, e 5 anos de Maria Antônia nunca bati em nenhum deles, mas gritar... Ah, os gritos saem quando eu menos espero e voltam em looping: arrependimento, lembranças e perguntas. Por isso, quando o texto de Elisama chegou até mim, me chamou tanta atenção. Não quero gritar com eles, porque acho violento e não acredito na violência como solução para nada. Eu acredito no amor, no acolhimento, no afeto e no diálogo. Ah, acredito no limite também, porque limite, para mim, é amor. Será possível educar meus filhos somente sobre esses pilares? Mesmo quando eles parecem ter entrado num acordo de que só pararão de testar minha paciência quando eu der o primeiro grito?
Conheci o trabalho da Elisama por meio das redes sociais. Educação é um tema que me interessa muito, e me senti seduzida por esse “novo” conceito de educação não violenta . Novo para mim, já que fui educada da forma “antiga”. Bom, segui acompanhando o trabalho dela pelas redes, trocamos algumas mensagens, até ela me convidar a escrever estas linhas.
Além deste volume que você tem nas mãos, ela me enviou seu primeiro livro, Educação não violenta , obra em que não só explica o conceito como dá exemplos de como colocá-lo em prática. Para escrever com maior conhecimento, achei prudente começar pelo primeiro livro — o que me fez quase perder o prazo de entrega deste texto. Eu me reconheci em vários relatos de mães e pais, muitas vezes perdidos e encurralados entre a educação que tiveram e a que gostariam de dar aos filhos. Como filtrar a educação que tivemos? Como não repetir o que não consideramos útil? E como fazer uso do que recebemos de melhor dos nossos pais?
Considero esses dois livros de Elisama como dois amigos que posso recorrer para me acolher, reconfortar, aconselhar e até para me guiar. Como estou com os dois ao lado da minha cama e como tenho dois filhos que estão 24 horas comigo — sim, estou escrevendo este prefácio no período de distanciamento social, para evitar o proliferação do novo Coronavírus, mais especificamente no 17º dia dentro de casa. Podem imaginar o quanto esses livros estão fazendo sentido?
Podem rir, faço isso o tempo inteiro; também choro, e muito. Tenho oscilado demais! E tem sido assim, dia após dia. Esses dias têm sido importantes para tudo: repensar como nos relacionamos com a Terra, com os seres humanos que habitam esse planeta, com os animais, com as plantas, com quem não conhecemos, com quem escolhemos dividir nossos dias e com nossos filhos, que são crianças e merecem um mundo justo e de possibilidades iguais para todos. Parece que estamos neste momento sendo colocados em xeque para que consigamos recalcular a rota, para seguirmos por um caminho diferente deste até aqui. E quem são e como estão nossos filhos, e como lidamos com eles nestes momentos de crise?
Termino destacando um pensamento que não me sai da cabeça: Quanto de mim, dos meus problemas, medos, angústias, cansaço, tristezas e frustações eu jogo nos meus filhos? Quanto a minha insegurança influencia na educação que dou a eles? Como não passar para eles uma carga que é minha? E como criar crianças que possam compreender os valores fundamentais da vida e das relações, vivendo num mundo e num momento tão específico como este, em que o medo e a insegurança tomam conta do meu corpo e da minha mente? Quando os vejo correndo pela casa, brincando, brigando e até me desobedecendo, parece que essas respostas me chegam de maneira muito natural: é por eles. Por eles que a coragem deve superar o medo. Então, coragem, mães e pais! Coragem para nos encararmos de frente e com maturidade! A leitura dos livros de Elisama vale muito. E vale por muitos motivos. Principalmente para entender que não somos os únicos e não estamos sozinhos nesta aventura cheia de caminhos, que é a educação de uma criança.
Taís Araújo, atriz,
apresentadora e jornalista
CARTA AO LEITOR E À LEITORA
Antes de iniciar uma palestra eu sempre dou três avisos que julgo muito importantes. E cá estou, iniciando este livro com eles. São lembretes simples, e seriam óbvios se não vivêssemos tão desconectados de nós mesmos e da fluidez da vida. E digo vivêssemos porque são avisos que repito para mim, dia sim, dia também, porque não vou me colocar no lugar de pessoa que encontrou a iluminação e jamais pisa na bola. Estamos todos na caminhada, cada um a seu passo e ritmo. A vida existe para além dos feeds perfeitos.
Pois bem, vamos aos avisos:
O primeiro deles é que não sou capaz de reprogramar o seu DNA. Nem de trocar o seu chip. Neste livro não há uma receita infalível para que você nunca mais grite com a criança ou jamais faça chantagem emocional com o adolescente. Temos algumas certezas na vida: precisamos de ar para viver; os bebês possuem um sensor que detecta quando as mães vão saborear uma comida quentinha e que os faz chorar desesperadamente justo nesse momento, e nós vamos errar. Vamos errar muito, várias vezes. Vamos gritar mesmo sabendo que não é o melhor caminho. Vamos perder a paciência, mesmo tendo prometido a nós mesmos que permaneceríamos calmos e serenos como a brisa. Vamos fazer merda. Todos nós, sem exceção. A escritora Kristin Neff, no livro Autocompaixão , afirma que, sempre que prometemos nunca mais errar, estamos estabelecendo para nós mesmos uma meta de gente morta. Gente viva erra. E eu quero lembrar que você está vivo. Ou viva. Então adeque as suas expectativas e lembre-se disso antes de se impor algo que jamais vai atingir. Não se presenteie com a garantia de frustração.
O segundo aviso é que os seus pais fizeram o melhor que podiam, com as ferramentas que tinham. Quando educaram você, não havia palestras sobre educação. Não havia livros, aos montes, nas prateleiras das livrarias. Não havia o Google. Pasme: não havia redes sociais. Munidos do conhecimento limitado que tinham, fizeram o que era possível fazer. A maioria deles não foi nem sequer tocada pelos próprios pais. Você já parou para pensar nisso? Que as gerações anteriores às nossas eram tratadas com tanta indiferença emocional que não recebiam um toque gentil ou um colo dos cuidadores? O conceito de infância é recente, sobretudo da forma que enxergamos essa fase da vida na atualidade. Então, de acordo com o que sabiam e diante do que receberam, eles fizeram o melhor e nada do que dissermos aqui será uma crítica pessoal ao que fizeram ou a quem são. Não há pai nem mãe que acorde disposto a causar danos emocionais aos filhos. Mesmo que isso não seja verbalizado, estão todos, cada um ao seu modo, fazendo o melhor com o que têm para dar. Os nossos pais fizeram o melhor. E nós também o fazemos.
O terceiro e último aviso é que você possui hoje tudo o que é necessário para iniciar a prática da não violência. O que quero dizer é que você não é uma pessoa nervosa demais ou irritadiça demais para isso. Você não é alguém que não tem jeito. E cuidar de si e do outro com gentileza e respeito não é coisa de gente naturalmente calma, branda e amorosa. E digo isso com muita segurança, já que branda não é exatamente uma palavra que alguém poderia utilizar para me definir. Na verdade, desde muito nova o meu apelido faz referência a algo oposto: um furacão. Eu tenho a palavra “c’alma“ tatuada no braço direito. Alguém que tatua “calma” não é alguém calmo, concorda? Você não precisa ser outra pessoa, precisa apenas aprender a lidar com quem é. Simples e complexo assim. Essas são as cartas que vieram para a sua mão, e reclamar porque a dama de ouros ou o ás de copas não estão entre elas não fará do seu jogo algo melhor. Você é bom o suficiente. Você é boa o suficiente. E eu quero provar isso nas próximas páginas. É para isso que este livro surge. Para que você faça as pazes consigo.
Em tempos de receitas milagrosas para ficar famoso, juntar o primeiro milhão, influenciar pessoas e conquistar a vida dos sonhos, eu desejo que você aprenda a amar quem você é. A apreciar as coisas simples da vida. A estar presente, mesmo quando o presente não é a realização dos seus sonhos. Porque aprender a abraçar a nós mesmos nos deixa mais dispostos a abraçar os nossos filhos. Cuidar dos nossos sentimentos nos torna mais capazes de cuidar dos deles. Ter compaixão pelas nossas imperfeições muda o nosso olhar para as imperfeições deles. Aceitar quem somos nos torna mais capazes de aceitar quem são. Educar é uma missão que começa por dentro. E o que temos dentro transborda.
Nas próximas linhas, vou dividir com você conceitos que estudei, desenvolvi e vivenciei. Vou compartilhar histórias minhas e de pessoas queridas que me deram o privilégio de escutar as suas dores e alegrias — alterando os nomes, para preservar a identidade e privacidade de cada um. Espero que entre Anas, Elisamas, Marcos e tantos outros que serão citados no caminho, você perceba que não está só. Que tudo bem ser você. Que existem formas saudáveis e possíveis de lidar com os seus erros e tropeços como parte importante da sua caminhada. Espero que você entenda que aceitação é o oposto de comodismo. A gente só é capaz de transformar o que aceita que existe. E, enquanto não aceitar quem é, você estará limitando o seu potencial. As suas relações podem ser mais verdadeiras e saudáveis. Você pode alinhar as suas atitudes com o que acredita. Ao escutar o que grita por trás dos nossos gritos, aprendemos muito sobre nós. E crescemos como pais e seres humanos.
Desejo que este seja um caminho de transformação: amorosa, gentil, assertiva, um pouco dolorosa, eu sei, mas também divertida. E, principalmente, libertadora, porque merecemos gozar da liberdade de sermos quem somos. E os nossos… ah, eles merecem pais livres, para que se sintam amados e aceitos sendo exatamente quem são.
Que o equilíbrio, a compaixão e a conexão transbordem na nossa vida.
Um abraço daqueles bem apertados,
Elisama Santos
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O grupo está atento. O silêncio enquanto eu falo é quase palpável. Na segunda fileira, Ana me encara, com uma expressão que não consigo identificar. Assim que concluo o raciocínio, ela levanta a mão.
— Eu me pergunto se você também lava prato, organiza a casa, briga com o marido e tem conta para pagar. Porque a minha vida está um caos, e eu não consigo seguir nada disso. Eu não consigo…
As lágrimas rolam feito enxurrada, enquanto ela me conta sobre os problemas financeiros que estão enfrentando em casa. Com dois filhos, marido desempregado e trabalhando para manter a vida nos trilhos, Ana não tem tempo, paciência nem equilíbrio para ouvir os sentimentos dos filhos ou acolher as suas dúvidas e dores. Quando estamos com lágrimas endurecidas no peito, como vamos acolher a lágrima que rola livremente pelo rosto das nossas crianças? Como vamos admitir o choro quando acumulamos tanto choro a ser chorado? Ana me conta que perde a paciência e grita com os filhos, sem perceber que o grito que exige colaboração é, na realidade, um pedido desesperado de socorro.
Seria mais fácil se a vida fosse sempre linda, satisfatória e maravilhosa enquanto educamos os nossos filhos. Seria incrível se, enquanto temos a difícil missão de ensinar sobre o mundo e a vida, as contas se pagassem automaticamente, a casa permanecesse perfeitamente limpa e organizada e o casamento e o trabalho não entrassem em crise. É inegável que seria mais fácil apenas educar. Mas não é bem assim que acontece. Enquanto o caçula grita porque o irmão escondeu o brinquedo, o mais velho berra que é mentira, os e-mails pipocam na caixa de entrada, o resultado do exame assusta e uma crise financeira assola a família e o país. Tudo junto e misturado. Sentimos dor, angústia, medo, frustração, raiva. E, em meio ao caos diário, cuidar dos sentimentos de uma criança que chora porque o brinquedo quebrou parece impossível, um desperdício da pouca energia que temos para dar conta das nossas próprias demandas. “É só um brinquedo, não precisa chorar!” pula da boca de maneira automática. “Não precisa chorar!” diz mais do que parece. Diz: “Eu tenho tantos problemas e coisas sérias para resolver e não estou chorando, quem é você para chorar por uma bobagem dessa?”
Silenciar os sentimentos dos nossos filhos diz muito sobre a nossa inabilidade de lidar com o nosso próprio sentir. O grito fala sobre nós. O nosso barulho interno excessivamente alto nos impede de escutar e nos conectar com a dor dos nossos filhos. Gritamos. Batemos. Silenciamos. Queremos que a dor pare — a nossa e a deles. E, já que não temos controle sobre o que acontece, já que não podemos mudar o resultado dos exames de saúde ou voltar no tempo e impedir a demissão e a crise financeira, calamos os nossos filhos, porque pelo menos nessa relação sentimos que temos um pouco de poder. De controle. Nela podemos gritar, exigir, subjugar. E quanto mais a vida dói, mais negamos o que sentimos, mais a dor aumenta e menor é a paciência para lidar com a dor alheia, o que causa ainda mais dor. É o ciclo do caos.
Calma, não quero que você sinta culpa ou desesperança neste momento. Quero apenas que entenda que o “felizes para sempre” não existe. Que a Cinderela com certeza bateu algumas portas do castelo, sentindo vontade de mandar o príncipe para o inferno. Idem para a Branca de Neve. Depois do “felizes para sempre” ainda há muita história a ser vivida e contada. Ainda há lágrimas, frustrações, medo. E nenhum desses sentimentos é prova de que você é incompetente e incapaz de lidar com a vida. Não existe linha de chegada. Dentre outras coisas, viver dói. Assumir isso como parte da existência transforma a nossa forma de lidar com a vida. Então não, a vida não vai ficar sentada, docemente, esperando que você aprenda a lidar com os desafios que a educação apresenta. A paz não virá de fora. Ninguém vai aparecer montado em um cavalo branco ou empunhando uma varinha mágica para salvá-lo ou salvá-la. Não vai surgir uma receita milagrosa, fácil e simples de filhos emocionalmente saudáveis, colaborativos e bem-sucedidos. Seus problemas não vão acabar. Faço questão de deixar isso claro aqui, bem no comecinho da leitura, para que você ajuste as suas expectativas e assuma as suas responsabilidades. Na realidade, a opção fácil e simples não vem no pacote. Sinto muito. Educar olhando para os nossos sentimentos é difícil, mas bater e gritar o dia inteiro também é. Lidar com a culpa e a ressaca moral depois de bater em um ser mais frágil física e emocionalmente que nós e humilhá-lo também é.
Ok, vamos educar enquanto sentimos dor, enquanto as frustrações acontecem, enquanto os pratos sujos se multiplicam, as contas vencem e os problemas surgem. Algumas fases serão simples, fáceis e doces, outras serão angustiantes e excessivamente desafiadoras. A vida é uma dança. A linha reta é a morte. Enquanto estivermos vivos, vamos conviver com luz e sombra, alegria e dor, vida e morte. Felizes, tristes, angustiados, animados, alegres, desesperançados e tantas outras coisas para sempre. É hora de assumir que não fomos educados para lidar com tudo isso. Hora de assumir que não sabemos quase nada sobre quem somos. Hora de admitir, finalmente, que aprender trigonometria ou a conjugação de verbos transitivos e intransitivos foi muito pouco para nos preparar para a vida. Precisamos de mais, porque a nossa interação com o mundo exterior depende diretamente do que acontece no mundo interior. Como lidamos com as nossas emoções interfere diretamente no “bom dia” que damos — ou não — ao vizinho, na forma de conduzirmos o carro, no tom de voz que utilizamos para responder ao “mãe!” ou “pai!”.
Não escolhemos a força das ondas, o tom da música ou as cartas do jogo. A vida manda, a gente aprende a lidar com ela. Decidimos como vamos navegar, que passos vamos dar, que jogadas vamos fazer. Não é o que fizeram conosco, mas o que fazemos com o que fizeram conosco. Podemos fazer muito. E aprender a lidar com os sentimentos e com quem somos é o melhor caminho possível.
O QUE APRENDEMOS SOBRE OS SENTIMENTOS
Ana concluiu a fala, enquanto muitos balançavam a cabeça para cima e para baixo, demonstrando concordância com o que tinham acabado de escutar. Eu manifestei a minha solidariedade ao momento difícil que ela estava vivendo e perguntei se ela acolhia a própria dor. A pergunta causou um nítido estranhamento. O que é acolher a própria dor? Como se faz isso? Ela me respondeu que não pensava muito. Se pensasse, não daria conta da vida. Ela simplesmente seguia. E é nesse “simplesmente seguir”, sem pensar nem refletir, sem olhar para nós e para as nossas necessidades, que mora uma das maiores dificuldades no relacionamento com os filhos. Com o outro. Com o mundo. Sem reconhecer e acolher o sentir, Ana seguia extravasando a própria dor em gritos de “larga o seu irmão!”, “come a comida toda!”, “se eu for aí você vai se arrepender!”.
Os sentimentos fazem parte da vida. Não são aplicativos que podemos desinstalar ou desativar. São tão humanos quanto a vontade de fazer xixi ou a sensação de frio. Mas, diferentemente das nossas necessidades físicas, as emocionais não costumam ser levadas em consideração ou escutadas. Pelo contrário. As mensagens que recebemos sobre os sentimentos nos afastaram da capacidade de lidar com eles.
APRENDEMOS QUE OS SENTIMENTOS SE CLASSIFICAM ENTRE BONS E RUINS
Os primeiros podíamos sentir; os segundos, não. Podíamos ficar alegres, animados, felizes. Não podíamos ficar tristes, frustrados. Não podíamos, de forma nenhuma, sentir raiva. “Você quer um motivo de verdade para chorar?” foi uma frase ouvida com frequência pela maioria das crianças. Enquanto estávamos frustrados com o brinquedo que parou de funcionar ou com o castelinho que insistia em não permanecer firme, o adulto mais próximo minimizava a nossa dor e dizia que não deveríamos sentir o que estávamos sentindo. “Que coisa feia, uma menina tão linda chorando assim!”, “Se não parar de chorar, eu não vou dar o brinquedo!” Assim, aprendemos que havia algo de inadequado e errado em alguns sentimentos. Agora me diga, com sinceridade, quantas vezes repetiu para si mesmo ou para si mesma que não deveria chorar, ou que a sua dor era ridícula e boba, fez com que se sentisse melhor? Quantas vezes você ficou triste por estar triste? Aprendemos que os sentimentos ditos ruins não deveriam existir e, por isso, passamos a vida brigando com eles.
Sempre pergunto, nas palestras e nos eventos dos quais participo pelo país, quem, em um momento de tristeza ou depois de cometer um erro, trata a si mesmo com carinho e respeito. Quem acaricia o próprio braço, respira fundo e diz a si mesmo: “A fase está complicada… está doendo… mas você está fazendo o seu melhor!” A sala fica em silêncio. Volta e meia, alguém sorri. É tão estranho que chega a ser engraçado. Daí pergunto quem costuma dizer a si mesmo as seguintes frases: “Eu não deveria chorar”, “Eu sou muito ridícula de chorar por isso!”, “Eu mereço mesmo quebrar a cara, quem sabe assim aprendo.” As gargalhadas brotam, e os olhares de “você tem uma câmera na minha sala?” me miram. Nós nos acostumamos tanto a ter os nossos sentimentos ridicularizados e menosprezados pelos nossos cuidadores que seguimos falando com a voz deles. Os sentimentos ruins não deveriam existir. Acontece que só aprendemos a lidar com o que aceitamos que existe.
APRENDEMOS QUE OS SENTIMENTOS NÃO SÃO ­CONFIÁVEIS
— Eu odeio a vovó!
— Você não odeia ela, você ama a vovó! Que coisa feia! Olhe a ingratidão!
— Mãe, tô com fome!
— Você acabou de comer, não está com fome!
Os exemplos seriam inúmeros. Crescemos ouvindo que a nossa voz interna não sabem de nada. Que não podemos confiar nos nossos sentimentos e sensações. Que apenas a mamãe, o papai e os demais cuidadores sabem do que precisamos e o que queremos; afinal, “criança não tem querer”. Veja bem, quando crianças, confiávamos plenamente no que os adultos diziam. O que nos diziam sobre quem somos, quem eles eram e como era o mundo eram verdades absolutas. Já reparou como as crianças buscam nos pais a resposta para as questões mais diversas? Nessa fase, tão estruturante, escutamos dos adultos que eles sabem mais sobre nós do que nós mesmos. Que não podemos ouvir a nossa própria voz interna, porque ela nos coloca em perigo. Como vamos aprender a lidar com os sentimentos se não podemos confiar neles?
Há algum tempo vi uma criança perguntando à mãe se ela própria estava com sede. O nível de desconexão com as próprias necessidades era tão grande que a criança não conseguia sequer reconhecer algo tão básico quanto a sede. O pior é que achamos que essas situações são normais. Acreditamos que sim, o adulto sabe tudo sobre a criança, a ponto de atropelar o saber nato de todo ser humano. Quantas vezes, na vida adulta, nos colocamos em situações que nos provocam dor e sofrimento, negando todas as vozes internas que nos dizem que aquela não é uma boa opção? Quantas vezes anulamos o nosso próprio querer e saber, buscando no outro a resposta para como devemos agir? Quantas vezes terceirizamos a responsabilidade sobre as decisões? Quantas vezes fica subentendido, nos nossos gestos e falas, que não nos consideramos confiáveis?
APRENDEMOS QUE OS SENTIMENTOS SÃO SINÔNIMO DE FRAQUEZA E DESCONTROLE
Não sei se você já assistiu ao filme Frozen , da Disney. Se não assistiu, vou contar um pouco do enredo. O filme conta a história de duas irmãs, Elsa e Anna. Uma delas, Elsa, tem o poder mágico de criar e manipular o gelo e a neve. Nos primeiros anos da infância de ambas, Elsa usava seu dom para divertir a irmã mais nova. Produzia gelo e neve para que ela patinasse e escorregasse, até que, em uma das brincadeiras, fere acidentalmente Anna, que quase morre. Desesperados e sem saber como lidar com a situação, os pais a isolam, impedindo-a de conviver com outras pessoas, inclusive a irmã, e lhe dão um par de luvas que a ajudam a conter seus poderes. Em determinada cena, a personagem canta: “Não podem vir, não podem ver/ Sempre a boa menina deve ser/ Encobrir, não sentir, nunca saberão/ Mas agora vão.”
Já adulta e após a morte dos pais, Elsa se vê forçada a sair da sua prisão. E as luvas que por tanto tempo a impediram de machucar outras pessoas não conseguem mais conter seu dom. Sem saber como lidar com todo aquele poder, ela foge para as montanhas, onde cria para si um castelo de gelo e, no processo, mergulha acidentalmente todo o reino de Arendelle em um inverno interminável. O filme tem um final lindo: Elsa começa a aceitar seus poderes e a lidar com eles, e tudo volta a ser fofo e florido, mas não é a esse ponto que quero chegar. Quero que você preste atenção à letra da canção que Elsa canta quando foge para as montanhas. Isso faz com que se lembre de alguma coisa? O que aprendemos a fazer com a raiva? Encobrir e não sentir. E com a tristeza? Encobrir e não sentir. E com o medo? Encobrir e não sentir. E com a frustração? A angústia? A ansiedade?
Agora me conte: o que acontece depois de anos e anos encobrindo esses sentimentos? Quantas e quantas vezes fingimos não sentir, até não dar conta de tanta dor e a descarregar no outro ou em nós mesmos? Quantos invernos congelantes produzimos fora e dentro de nós porque anos usando luvas nos impediram de lidar com quem somos?
Aprendemos a encobrir os sentimentos porque forte é quem não sente. É quem sustenta o sorriso no rosto mesmo com o coração despedaçado. Choro é sinal de fraqueza; raiva é sinal de descontrole. Ambos demonstram que não somos os seres humanos perfeitamente educados e maduros que deveríamos ser.
Quantas vezes escutamos — e por vezes dizemos — que alguém é forte porque aparenta não sentir uma perda ou uma dor? E quantas vezes negamos o nosso sentir porque consideramos que, se demonstrarmos alguma vulnerabilidade, seremos considerados fracos e inadequados?
Qual é o preço da sua força? Quanto de você é atropelado e esquecido diariamente para que se mantenha firme no papel de quem não sente?
Volta e meia alguém me questiona sobre que capacidade uma geração que tem os sentimentos acolhidos terá de lidar com a dor e a frustração. Esse questionamento me mostra que temos pouquíssima consciência das nossas incapacidades. Olhe ao redor: nós somos uma sociedade que sabe lidar com a frustração? Nós sabemos lidar com a dor?
HELENA E O BRINCO
Não furamos a orelha de Helena, minha filha caçula, quando ela nasceu. Aos 5 anos, a pequena decidiu que gostaria de usar brincos. Procurei um lugar adequado, fomos até lá, mas saímos com apenas uma das orelhas furadas e uma hora de choro sofrido. Decidimos que um dia, quando estivesse pronta, eu a levaria novamente. Uma semana depois, enquanto eu viajava, algo bastante improvável aconteceu. Enquanto o pai desembaraçava os cabelos da pequena, o pente se prendeu ao brinco, puxando-o de tal forma que ele saiu pelo furinho recém-feito. Imediatamente, muito sangue escorreu. Diante da dor, do susto, do medo e da frustração de ver o brinco sair dessa forma, a minha menina chorou desesperadamente. Até que fechou os olhos, respirou fundo e cantou. Cantou para se acalmar, como eu já havia feito inúmeras vezes. Muitas pessoas me dizem que a vida não é gentil e acolhedora. Que as crianças precisam aprender a engolir a dor, porque não estarei ao lado delas para acolhê-las para sempre. Não, eu não estarei. Mas quando não estiver ao lado, estarei no coração. E Helena, aos 5 anos, provou claramente a verdade disso. Não encobrimos, sentimos. Permitir que os sentimentos existam nos torna mais capazes de lidar com eles. Força é sustentar o que se sente com respeito e honestidade. Sentimentos não são sinônimo de fraqueza.
OS HOMENS E A FORÇA
Impossível falar de força e sentimentos sem mencionar a forma como educamos os nossos meninos. Há um conceito distorcido do que é ser homem em nossa sociedade que aprisiona os homens e os distancia do próprio sentir. Sou mãe de um menino e de uma menina e vejo as pessoas tratarem o meu filho com menos carinho pura e simplesmente porque ele é menino. É comum que mudem o tom de voz ao falar com ele. Enquanto os sorrisos e o carinho costumam fazer parte da forma com que falam com Helena, Miguel recebe tapinhas nas costas, soquinhos e apertos de mão. Eu, que sou mãe e sei ler boa parte dos olhares do pequeno, sei que ele também gostaria de carinho, abraços e beijos. O fato de ter um pênis não tira dele a necessidade de toque e aconchego. Certa vez, conversando com o meu marido sobre amizade, percebemos a imensa diferença na forma como enxergamos os nossos amigos. A intimidade e o companheirismo que tenho com as minhas amigas foram construídos com lágrimas e abertura emocional. Quando criança, quando estava chateada porque havia apanhado dos meus pais, podia bater na porta da minha vizinha e melhor amiga, Carol, e era certo que encontraria um ombro no qual chorar. Era seguro demonstrar os meus sentimentos para ela. Já Isaac, meu marido, não podia fazer o mesmo. Era muito provável que, se batesse à porta de um amigo chorando porque tinha apanhado ou algo semelhante, escutasse coisas como: “Você é veado? Homem não chora!”, “Você é um homem ou um saco de batatas?”
Mesmo que a família não fosse um lugar seguro para demonstrar as emoções, para boa parte das mulheres a amizade servia como amparo e refúgio. Para os homens, não. Enquanto a mulher foi educada para se preocupar com a aparência, atrelando o valor que dava a si mesma aos quilos na balança, os homens foram educados para serem fortes. Elas não deveriam parecer gordas. (Quantas vezes você, mulher que me lê, perguntou a alguém próximo: “Essa roupa me deixa gorda?”) Eles não deveriam, em hipótese alguma, aparentar fragilidade. Parecer afeminado? Jamais!
A luva colocada na mão dos meninos vai ficando mais e mais grossa. E os seus efeitos sobre a relação com eles mesmos e com os outros são sentidos diariamente, nos índices de violência ou em simples conversas domésticas.
APRENDEMOS QUE OS SENTIMENTOS NOS FAZEM MENOS MERECEDORES DE AMOR, CARINHO E RESPEITO
Certa vez, em um momento de raiva, a minha filha, então com pouco mais de um ano, gritou com a minha mãe. Naquele momento, de maneira automática, ela respondeu: “Assim a vovó não ama!” A minha mãe deixaria de amar a neta? Jamais. Mas aquela era a forma de demonstrar reprovação que ela conhecia. Condicionando o amor. Já falei que os nossos pais fizeram o melhor que podiam com as ferramentas que tinham, mas isso não muda o fato de que aprendemos que somos amados quando somos legais, obedientes e bonzinhos. Somos amados quando agimos da maneira esperada. Quando a raiva aparecia, quando a frustração causava dor, quando a tristeza invadia, éramos também tomados pela sensação de solidão. Em vez de abraços e acolhimento, recebíamos críticas, agressões e ameaças, e o desconforto que os nossos sentimentos causavam era quase palpável. “Não posso demonstrar o que sinto, ou ninguém vai gostar de mim” era uma conclusão fácil.
Nenhum bebê deixa de chorar por medo de perder o amor dos pais. Se sente medo, fome, sono, susto, ele chora, já que o choro é a sua principal forma de comunicação. É com o tempo e a reação dos adultos ao nosso redor que concluímos que alguns sentimentos podem ser demonstrados, outros não. Que alguns sentimentos podem ser vivenciados e outros causam um desconforto tão grande em quem nos cerca que devem ser escondidos e ignorados. Que quando sentimos raiva, o papai grita e bate; quando sentimos medo, a mamãe menospreza e nos chama de bobos. Assim, associamos a alguns dos principais sentimentos humanos a certeza de que eles diminuem o afeto de quem deveria nos amar incondicionalmente.
Antes que você conclua, erroneamente, que eu acredito que as crianças devam agir da forma que quiserem, gritando, batendo e ameaçando os pais enquanto estes apenas riem e pensam: “É só uma criança!”, esclareço que entre acolhimento e permissividade há uma diferença enorme. Acolher o sentimento é entender que somos os adultos da relação e que é nosso dever ensinar às crianças que os sentimentos são inevitáveis, as nossas atitudes diante deles, não. No livro Educação não violenta , apresento formas saudáveis, amorosas e assertivas de fazê-lo.
AS CONSEQUÊNCIAS DESSES APRENDIZADOS
Foram muitos os aprendizados equivocados sobre os nossos sentimentos; listei apenas os principais. Nos ensinaram o que era um lápis e um tênis, como manusear a faca. No entanto, nunca foi prioridade nos ensinar o que são a frustração, a tristeza, a angústia. Não nos ensinaram a lidar com a raiva. No intenso e desafiador mundo interior, nos aventuramos sozinhos. E o que aprendemos a nosso respeito apenas nos distanciou dos tão almejados autocontrole e força. Fugir dos nossos sentimentos nos faz vivenciar consequências que ferem a nossa relação conosco, com o outro e com o mundo.
NÓS NOS ENTORPECEMOS
Se os sentimentos são, na sua maioria, ruins; se não são confiáveis; se são sinônimo de fraqueza e de descontrole e não nos fazem merecedores de amor, carinho e respeito, é claro que não saberemos vivenciá-los com sabedoria. Temos tanto medo do medo e ficamos tão tristes por estarmos tristes que encontramos na fuga o caminho mais eficaz. Nós nos entorpecemos. Não, não estou falando do uso de drogas ilegais, mas sim dos nossos pequenos entorpecimentos diários. Horas nas redes sociais, percorrendo feeds e timelines alheios, para não pensar em nossa própria vida. Beber, comer. Assistir à Netflix até que a mensagem “Você ainda está assistindo?” apareça na tela. Vale qualquer coisa para não experimentar a dor, o desconforto, a frustração. Nos dois anos mais difíceis da minha vida adulta, engordei 26 quilos. O nó na garganta descia mais fácil com doces cheios de leite condensado.
Cada vez que, na infância, a dor aparecia, nós recebíamos uma nova camada de dor provocada pelos nossos cuidadores. O brinquedo quebrava e você, cheio de frustração e irritação, o atirava longe. O adulto mais próximo, com a sua própria imaturidade emocional, levava a atitude para o lado pessoal. Entendia que aquele gesto era uma afronta de uma criança mal-educada. E, como reação impensada, gritava, batia, silenciava. O seu coração, que já estava acelerado, batia ainda mais rápido. Medo, raiva e mais frustação se misturavam à dor que já existia. A sensação de inadequação tomava o corpo, que, silenciado, era obrigado a engolir o choro. Assim fomos apresentados às sensações físicas e emocionais dos sentimentos. E em vez de lidar com o nosso sentir, queremos apenas que a dor pare. Nós nos entorpecemos, buscando uma anestesia. Seguimos, como a criança que se vê ameaçada por um ser com duas ou três vezes o seu tamanho, assustada e encolhida, impotente diante do que a vida traz. E é chegada a hora de assumirmos o nosso tamanho.
BRIGAMOS E RESPONSABILIZAMOS O OUTRO PELO QUE SENTIMOS
— Assim a mamãe fica triste!
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